quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O Cais das Merendas - Lídia Jorge

O Cais das Merendas, de Lídia Jorge, publicado em 1982, coloca-nos, antes de tudo, perante duas questões fulcrais: uma, no que diz respeito ao conteúdo/temática; outra, no que concerne à forma ou, se quisermos, ao processo como narrativamente a escrita se configura.
Assim, em primeiro lugar, estamos perante uma obra que nos questiona sobre a colonização cultural que Portugal vive nos tempos subsequentes ao 25 de Abril de 1974. Um grupo de personagens de caracteres multifacetados, por vezes controversos, mas espelhos de grupos/indivíduos que são identificáveis com os portugueses, mais ou menos desenraizados da jovem democracia, e que procuram uma afirmação cultural entre o que vem do estrangeiro e as suas raízes culturais. Isto mesmo constatamos quando as diversas personagens se socorrem do inglês ou do francês, mas também, de dialectos da língua portuguesa…
Por outro lado, em O Cais das Merendas, estamos perante uma obra literária que rompe com o modus operandi da estética realista, uma vez que ultrapassa os limites da imitação do mundo real; por conseguinte, em O Cais das Merendas estamos entre o real e o irreal, quer por causa da intriga, quer como processo narrativo. Quer isto dizer que, na linha do pós-modernismo, O Cais das Merendas insere-se numa linha descontruccionista dos géneros literários, nomeadamente no que diz respeito à entidade narrativa. Esta é uma voz plural que ora se torna presente, sobretudo quando invoca Rosária – uma personagem/leitora, ou ambas, simultaneamente? – ora desaparece, deixando que uma outra personagem assuma o relato da história. Mas também a mancha gráfica das histórias que se encaixam na narrativa e a pontuação dos diálogos merecem uma atenção especial que ultrapassa os limites deste comentário.
Em suma, O Cais das Merendas inquieta-nos ideologicamente e faz-nos reflectir sobre a nossa identidade cultural. Não deixa de ser curiosa a própria metáfora do título que faz do país um cais à beira-mar plantado, onde os turistas/rurais/trabalhadores se divertem, se encontram e se questionam… Sobre o papel reservado a Portugal no quadro europeu e atlântico? De igual modo, estilisticamente, esta obra pós-modernista requer do leitor uma imbricação, durante o acto de ler, semelhante ao degustar de um excelente néctar…

Leiamos um pequeno excerto:
“A vigésima foi longa, mas de dizer muito breve. Porque daquela vez Sebastião Guerreiro tinha resolvido não alinhar. Ficaria a ouvir as notícias, sentado na cama, uma almofada atrás, à escuta de uma palavra familiar, pelo menos de de som. As insónias estavam a deixá-lo parco. Serviria mesmo thames, hyde park, big bem, ou um simples nome de pessoa como edward, jonhnny, e assim. Não iria. Também porque o mundo era redondo e miss Laura deveria estar em algum dos sítios onde se ouvisse o mesmo, à mesma hora, ou pelo menos semelhante. Não iria. Que fossem. Sabia que estava dispensado sempre que quisesse, mas não queria. E não iria. Escusavam vir fazer toc toc à porta chamando-o. Sebastião. O Alguergue estava deserto, os quartos tão vazios nesse meio-dia, e tão limpos, tão fechados, que pareciam coisas mastabas fazendo figas com as portas. Mas não, não iria. Apenas dois ou três hóspedes solitários, em quartos alternados para se facilitar o contacto sem promover contudo a intimidade forçada. E não iria. Aliás, para ser franco, também não compreendia aquele gosto de fazerem party lá fora, tendo casa asseada e mesa à disposição. Telhado firme a proteger do vento. Poderiam pensar que queria aproveitar a tarde para ver se quem estava nos quartos era homem ou mulher, como antes, mas não, enganavam-se. Depois de miss Laura sentia-se canário a quem tinham tirado o poleirinho do canto. Sem a menor vontade de tomar iniciativas, nem de olhar para outro pássaro. Viessem elas aos bandos e de roupas já de zip aberto. Estava interessado em não ir, não iria.”
Lídia Jorge in O Cais das Merendas, p. 110
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João Paulo Fonseca

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