quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Nome de Guerra - Almada Negreiros

Almada Negreiros, pintor e escritor, nasceu em S. Tomé e Príncipe, em 1893 e faleceu, em Lisboa, em 1970. Como artista plástico, o seu trabalho levou-o a fazer parte da Academia Nacional de Belas Artes, onde foi admitido em 1966. Bastante conhecido é o seu retrato de Fernando Pessoa. Como escritor, marcou uma época e, juntamente com Fernando Pessoa, desencadeia um movimento de reforma da vida cultural e sobretudo literária de Portugal, quando, em 1915, depois do primeiro número da revista Orpheu, lança o Manifesto Anti-Dantas – um ataque corrosivo e profundamente satírico à literatura tradicional, representada por Júlio Dantas.
Em Nome de Guerra, cujas personagens principais são o Antunes e Judite – aquele é um bem-nascido, rico, porém, fruto de uma educação conservadora, desconhece o mundo e as suas seduções…; esta é uma prostituta lisboeta, altiva e consciente do fascínio que desperta nos homens – encontramos todo um processo de auto-descoberta por que passa este jovem ido da província para Lisboa.
Um romance em que conta sobretudo a evolução interior, a evolução do carácter de Antunes e a visão que ele tem de si próprio, dos outros e do mundo. As mudanças que esta personagem vive em tão pouco tempo de permanência em Lisboa, permitem-nos, através da ficção literária de Almada Negreiros, descobrir o sentido que este dá às necessárias – mesmo se violentas – mudanças pelas quais Antunes e, no fundo, tudo o ser humano tem de passar. É voz corrente dizer-se que crescer dói; dizemos, também, que ninguém é uma ilha isolada; pois bem, em Nome de Guerra encontramos o choque de personalidades como processo de descoberta e construção da própria personalidade. Assim se entende a moralidade do romance com que o narrador termina: “Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar.”
Eis um excerto de Nome de Guerra:
De vez em quando abria-se mais uma garrafa de champanhe na mesa do Antunes e o estrondo parecia um desafio à sala inteira. Quanto mais crescia a animação nesta mesa mais o resto parecia tumular e esmagado. Mas não era tal um desafio, era o verdadeiro prazer próprio destas casas: passar o tempo que está a mais na vida, distrair com ilusão autêntica o que não é feliz ou tarda.
…lugares próprios para a distracção, para pôr de lado raciocínios, onde há músicas que não pensam e falam de tudo, depressa, num segundo, o bastante para recordar ao de leve e até ao fundo as doces e as tristes lembranças, e passar logo para não pensar, e ter os olhos cheios de luzes, e os ouvidos cheios de sons, e entretidos todos os sentidos, e a alegria estupenda, artificial, autêntica, suspensa, no ar, uma coisa leve, sem peso, sem significado, sem feitio, imaterial mas a encher admiravelmente aquele momento!
Os atentos são os únicos que não ignoram quanto a distracção dos sentidos lhes limpa a própria atenção. Quanto mais perdidos nos parecem os sentidos, mais livres regressam à nossa visualidade, ao entendimento justo das coisas. Esta é a significação dos espectáculos, das diversões, das viagens, de toda a distracção. Porém, nas casas abertas toda a noite, os personagens estão ali ferozmente presentes na nossa frente para não podermos duvidar. Depois da meia o juízo foi-se deitar e tudo serve de álcool para desequilibrar os sentidos habituados a ver tudo em pé! E isto às vezes é o bastante para se reparar que afinal o que estava de pé era a ilusão, e a realidade de rastos.
- Champanhe! Mais champanhe! – mandava o Antunes aos criados.
É a sensação mais horrorosa que possa imaginar-se aparecer de repente a verdade a uma pessoa que faz por iludir-se. O Antunes desejava que a festa tivesse ainda mais brilho, mais artifício, mais música, mais barulho, mais fantasia, mais vertigem. Ele queria a verdadeira mentira, essa que vale tanto de noite como a verdade de dia. Mas por mais que fizesse não conseguia deixar de ver diante de si em todos os homens e em todas as mulheres caricaturas grotescas, estrangeiras, tortas, incompreensíveis, inúteis, vivas, em carne e osso, como gente, hediondas, malditas, metamorfoses que não prosseguem, que ficam informes, aos pedaços, mal feitas, mal fabricadas, erradas, empecilhos, envenenadores da memória, mascarados, oiro de cenografia vista ao pé, papelão a fingir carne, barato e sem ilusão.
Almada Negreiros, Nome de Guerra

João Paulo Fonseca

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