quinta-feira, 28 de maio de 2009

As Intermitências da Morte - José Saramago

A reflexão sobre a condição humana que a mundividência saramaguiana plasma em As Intermitências da Morte, através da utilização de um registo modal fantástico, permite exacerbar as estruturas fundamentais de uma sociedade moderna, evidenciando o caos que se faz sentir, nesse país sem nome, sem se saber para onde o homem caminha.
Assim, José Saramago promove uma crítica de costumes, graças à suspensão da morte, que lhe permite destacar a irresponsabilidade do ser humano no que respeita a utilização dos recursos naturais, aos sistemas económicos e sociais instituídos e causadores não só das desigualdades no acesso à riqueza, mas também da insegurança e da marginalidade que se fazem sentir.
Nesta excitação, que o fantástico promove, assume particular relevância o confronto que o ser humano faz, primeiramente, dada a ausência da morte, consigo próprio, ao constatar que a vida se torna, a todos os níveis e em todas as estruturas sociais, impossível; de seguida, nem o pré-aviso da chegada da morte lhe abre os olhos para a evidência que esta insiste em revelar-lhe: a morte está dentro dele desde o seu nascimento, juntos fazem a viagem da vida e, por conseguinte, há que a aceitar como fazendo parte da condição finita do ser humano.
Através de uma longa metáfora, o autor levanta a acuidade da morte, quer do suicídio, quer da eutanásia, mas sobretudo da morte natural. Será necessária, pois, a antropomorfização da morte e esta, ao tornar-se mulher, exorciza, metonimicamente, os medos que causa ao homem É também essa metamorfose da morte que permite, graças à filiação do romance na mitologia clássica, nomeadamente nos mitos de Tânatos, Eros, Orfeu e Sísifo, toda uma dialéctica entre Eros e Tânatos, em que este se vai deixando cativar por aquele. Nesse âmbito mitológico se enquadra a relação amorosa da morte/mulher com um violoncelista que se recusa a morrer.
Esta recusa do homem moderno em aceitar e conviver serenamente com a morte natural faz com que, no plano do fantástico, Tânatos seduza o violoncelista, sem se dar conta que, graças a Orfeu, está a tornar-se cativo de Eros. Tal como Sísifo, um dia, o aprisionou, mesmo se a prazo. Também o ser humano apenas consegue adiar, temporariamente, a morte. Ora, a entrega sexual da mulher/morte e do violoncelista vem, metaforicamente, afirmar a urgência de afastar os medos da morte e, simultaneamente, através do acto sexual, afirmar também um hino à vida e ao amor, afirmar uma cultura de amor e de valorização da vida, na consagração dos direitos humanos, como quadro antropológico e cultural do exercício pleno da condição humana.
João Paulo Fonseca

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