quinta-feira, 28 de maio de 2009

As Intermitências da Morte - José Saramago

Recorrendo a um registo modal do fantástico, José Saramago cria em As Intermitências da Morte um país ficcional, num tempo contemporâneo, com cidadãos comuns, e toda uma tessitura narrativa que, através da suspensão da morte, lhe permite exacerbar algumas das estruturas nucleares de uma sociedade moderna, com o intuito ideológico de promover a reflexão sobre a morte e o amor. O estado e a igreja passam sérias dificuldades para manter a sua credibilidade enquanto instituições que dirigem os cidadãos e os crentes – aquele, porque se vê a braços com um crescimento absurdo da população idosa, para a qual não haverá, um dia, forma de pagar as pensões; esta, porque sem a morte, não há ressurreição, não há religião, nem igreja. Os hospitais vêem-se a braços com uma incapacidade técnica de albergar todos os padecentes; os lares do feliz ocaso multiplicam-se como cogumelos e transformam-se numa pirâmide etária invertida; as seguradoras e as agências funerárias, apesar do forte abalo que as suas actividades sofrem, conseguem adaptar-se aos novos tempos que agora se vivem neste país em pleno estado de entropia, e onde a máphia surge como única organização capaz de contornar a morte, levando os padecentes terminais a morrer para lá da fronteira.
Nada poderia salvar este país do caos, a não ser o regresso da morte, como constata o primeiro-ministro. E a morte regressa. Porém, não como antigamente, mas anunciando-se através de uma carta violeta recebida pelo futuro defunto com uma semana de antecedência. Tem, assim, tempo para se preparar para a morte. Entretanto, o estado e a igreja suspiram de alívio. Com o regresso da morte, o equilíbrio na balança etária retorna ao que era dantes e a igreja continua a sua função de preparar os destinatários da carta violeta para o momento final. Os hospitais retornam à normalidade, assim como os lares da terceira idade, pois o regresso da morte, após sete meses de ausência, permite escoar o excesso de idosos acumulados. As agências funerárias retomam o seu vigor, e as seguradoras vêem surgir-lhes novas oportunidades. Caída em desgraça, a máphia dedica-se à extorsão em troca de protecção às funerárias. Inesperadamente, um facto vem quebrar a rotina da morte no seu expediente diário: uma carta dirigida a um violoncelista insiste em ser devolvida.
A morte vê-se, então, na contingência de averiguar o que se passa: vai a casa do violoncelista, segue-o aos ensaios no teatro e engendra uma estratégia para resolver a situação. Para isso, porém, tem de assumir a forma humana. Conhece, pessoalmente, o violoncelista e este apaixona-se por ela. Perturbada, perdida neste labirinto, tendo dificuldade em reconhecer quem é, a morte antropomorfiza-se, faz amor com o violoncelista e “no dia seguinte ninguém morreu.” (Saramago 2005: 214); ou seja, o amor acaba por vencer a morte.
João Paulo Fonseca

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